O Fado está de luto, morreu Alfredo Marceneiro...
Até na sua morte o Fado aconteceu. Cumpriu-se a profecia do poeta Armando Neves.
'Um fado a Marceneiro, canta Fernando Farinha'
'Gavetão e Cortejo'
'Diário de Noticias' de 27-6-1982'
'O Primeiro de Janeiro' de 27-6-1982'
'Diário Popular' de 27-6-1982'
'Jornal O Dia' de 28-6-1982'
'Correio da Manhã' de 28-6-1982
'A Capital' de 28-6-1982 (artigo de Fernando Peres)
'Revista Mais' de 2-7-1982
Alfredo Marceneiro faleceu na sua casa, pelas sete horas da manhã do dia 26 de Junho de 1982, com 91 anos.
O seu corpo esteve em câmara ardente na Igreja de Santa Isabel, sendo a urna coberta pela Bandeira Nacional e a bandeira da cidade de Lisboa por iniciativa do, então, Presidente da edilidade Engº Krus Abecassis e ainda uma guarda de honra permanente, prestada pelos Soldados da Paz do Batalhão de Sapadores Bombeiros de Lisboa.
O Padre designado para fazer as exéquias do funeral de Alfredo Marceneiro desconhecia de todo a sua obra, mas impressionado com os milhares de pessoas presentes no velório, quis esclarecer-se sobre a sua figura. Levou a noite a escutar José Pracana e este tão eloquentemente lhe falou do seu querido amigo "Ti Alfredo" que, no dia do funeral, o Padre ao dizer a Missa de Corpo Presente, ele próprio com as lágrimas nos olhos, enalteceu a sua imagem de lisboeta e fadista, amante da sua cidade e da sua freguesia. E a todos surpreendeu quando recitou os versos que Marceneiro tantas vezes cantou:
Minha Freguesia
à Freguesia de Santa Isabel
Letra de Armando Neves
Música de Miguel Ramos (Fado Margarida)
Se os cantadores todos, hoje em dia
Ruas e bairros cantam, de nomeada
Eu cantarei à minha freguesia
A de Santa Isabel tão afamada
Freguesia gentil que não tem par
É talvez de Lisboa, a mais dilecta
De D. Diniz, a rua faz lembrar
O esposo de Isabel o Rei poeta
Lembra a Rainha Santa, quando vinha
Transformar o pão em rosas, com fé tanta
Ela que Santa foi, menos Rainha
Mas foi entre as Rainhas, a mais Santa
Poetas e literários, foram seus
Ilustres moradores, geniais
Como Almeida Garrett, João de Deus
Teófilo, Junqueiro e outros mais
Freguesia onde enfim, moro também
Onde sempre pisei honrados trilhos
Nela casou a minha querida mãe
E nela é que nasceram os meus filhos
Que Deus me dê a graça, a alegria
Na vida tão cheinha, de desgostos
A vir morrer na minha freguesia
Como um soldado morre no seu posto
Pouco tempo após a sua morte, o grande fadista/poeta e seu grande amigo e admirador Fernando Farinha, presta-lhe uma homenagem gravando em disco versos e música de sua autoria
UM FADO "A MARCENEIRO"
À solta e desvairada a morte certo dia
Entrou no velho pátio e ali quase em segredo,
Num golpe traiçoeiro de raiva e cobardia,
Maldosa nos levou p'ra sempre o Ti Alfredo
Ao chorar das guitarras como se fosse um hino
Juntou-se a voz do povo de Portugal inteiro
Tinha morrido o rei fadista genuíno
O mais de todos nós o grande Marceneiro
Sua garganta rouca tinha o condão cubano
De nos dar fado a sério sem ais, sem fantasias
Se o fado para ser fado algum segredo tem
Então esse segredo só ele o conhecia
Sempre que a noite chega eu julgo ainda vê-lo
Fazendo a sua ronda p'los retiros de fado
De boné ou mostrando o seu farto cabelo
E o seu lenço varino ao pescoço ajustado
Recordo as suas birras e em grande cavaqueira
Seus ditos graciosos se bem disposto estava
E oiço até o seu riso no Cacau da Ribeira
Onde já madrugada sua ronda findava
De Alfredo Marceneiro eu guardo um disco antigo
E um retrato dos dois sobre um fundo bairrista
Um fado ao desafio que ele cantou comigo
E uma eterna saudade desse enorme Fadista
A Câmara Municipal de Lisboa disponibilizou um gavetão perpétuo no Cemitério dos Prazeres onde repousam os seus restos mortais.
O cortejo fúnebre (algo inédito na altura) efectuou-se a pé, numa sentida manifestação de pesar desde a Igreja de Santa Isabel até ao Cemitério dos Prazeres. Guitarras choraram durante todo o percurso, " a Marcha de Alfredo Marceneiro", e o povo que acompanhava o cortejo cantava em surdina (algo muito emocionante).
O Povo de Campo de Ourique estendeu colchas nas janelas, numa homenagem singela ao homem simples do seu bairro.
"Guitarras choraram por
Alfredo Marceneiro"
'Correio da Manhã'
28-6-1982
"Guitarras Choram no funeral
de Marceneiro"
'Jornal A Capital' 28-6-1982
Artigo do jornalista e poeta Fernando Peres, seu grande amigo e admirador
"Não sabemos de quem teria sido a ideia mas não é difícil adivinhá-lo, José Pracana tem alma de poeta e uniu-o sempre ao "ti Alfredo" uma amizade filial. Talvez pela primeira vez, desde a saída do corpo até ao cemitério dos Prazeres, guitarras e violas choraram o que deixa insubstituível um lugar e foi um intérprete ímpar de várias gerações. Apenas melodias suas foram escutadas por gente que se espalhava pelas janelas para assistir ao cortejo enorme e ouvir um coro imenso de vozes de que Alfredo Duarte (o Marceneiro para toda a gente) era autor e andam na boca de toda a gente.
Esta é uma verdade indesmentível. Se reflectirmos, podemos concluir que a vida e a morte constituem os círculos viciosos do tempo.
A hora que se viveu é uma hora morta. Aquilo que hoje é emoção violenta, constitui amanhã, uma sensação esquecida.
Devemos insistir: esta é uma verdade indesmentível pois existe dentro de cada homem uma tragédia que ele ignora e uma comédia que ele vive. Algumas vezes, a tragédia é caricata, ridícula, dá vontade de rir. Mas nunca ninguém riu da tragédia que consigo arrasta. É que a dor é um sinal da vida. Na realidade, só vive quem sabe sofrer...
Por isso "ti Alfredo" não sofre sozinho. Consigo leva um bocadinho do coração de todos nós. Os ídolos do fado são ídolos do povo. E um desses foi esse extraordinário Alfredo Marceneiro, decano dos intérpretes portugueses e, talvez, mundiais. Quase todos choraram quando foi o "momento da despedida". Mas homens como o "ti Alfredo" não morrem, nunca. Faltou a madrugada, substituída por um Sol radioso. Mas tudo teve expressão e significado. Valeu pela intenção valiosa e espectacular (houve quem estivesse de muletas). Se era preciso, foi a consagração de um grande fadista. Quantos o acompanharam, e entre eles o secretário de Estado da Presidência do Conselho de Ministros, Leonor Beleza, constituíram um público, sem distinção de classes ali acorrendo a acenar o seu adeus ao maior intérprete da canção, nascida não se sabe onde ecoou em vozes doridas e viciosas nas betesgas das ruelas de Lisboa. Depois, ganhou raça em gargantas aristocráticas e hoje corre mundo na névoa das "boites".
De facto, passam tristezas a desfazer-se e o vento arrasta-se, lentamente, com vagares de cansaço. Já se feriram alegrias em vibrantes risos. Uma lágrima indiscreta espreita um sorriso.
Não o disse? "Felizes os que sabem, colhendo beleza e poesia, refugiar-se em recordações purificadas da mesquinhez do mundo. Felizes os que são sabem, colhendo inspirados pelo amor, para quem o poente é sempre uma rosa e o azul tem transparências". Teve a sua companheira - a tia Judite - ao seu lado até ao último momento. Mãe dos seus filhos teve até ao final um gesto de amor. "Felizes os que sabem andar, feliz o coração no espaço infinito, entre orações, bênçãos e perdão. Felizes os que sabem demorar o perfume que o amor deixou".
Lá estiveram os seu amigos. O infalível Júlio Amaro (como podia ele faltar?). E sabe uma coisa? Foi uma manifestação de ternura, neste mundo de egoísmos, cada vez mais fracas.
Ti Alfredo, até qualquer dia..."
"MARCENEIRO
O Fado de Luto"
'Revista MAIS' 2-7-1982
2 de Julho de 1982, destaca-se no seu editorial um artigo da autoria de um grande jornalista e escritor.
UM SILÊNCIO NO FADO por Miguel Esteves Cardoso
"Um silêncio no Fado", eis o que se fez, súbito, no último fim-de-semana.
Morrera Alfredo Marceneiro ou, se preferirem ele mudara de "poiso" para parte incerta onde, afinal, todos acabaremos por beber do mesmo copo - como ele continua, certamente a fazer.
Um silêncio no Fado, eis o que se fez, súbito no último fim-de-semana.
Um silêncio de guitarras e violas, um silêncio de gargantas vazias, um silêncio cúmplice de cantos impossíveis.
Alfredo Marceneiro "diz" agora ali mesmo, ao virar desta esquina, todos o sabemos. Por isso aqui estamos prontos a escutá-lo naqueles que o testemunharam, naqueles que o viveram e conviveram.
Prontos, não a consagrá-lo (que é lá isso?) mas a guardá-lo, nosso."
Ao fadista, Alfredo Marceneiro, bem ido e bem vindo, por, ocasião do fim da sua primeira vida (1891 - 1982)
"Se, como escreveu D.H. Lawrence, a morte é a única pura e bela conclusão de uma grande paixão, então a morte do fadista Alfredo Marceneiro é, também ela, um acto de paixão.
E é um Fado.
E é uma morte.
Mas um fadista não morre como morreram os outros homens.
A morte não o surpreende nem o leva - é ele que a chama e a ela se entrega. Porque ser fadista é atiçar, cortejar, pedir a morte desde o primeiro momento em que o Fado lhe nasce na voz. Um fadista, ao morrer, vê a sua arte a atingir o ponto máximo de perfeição.
E é um Fado.
E é uma morte.
Mas um fadista não morre como morrem os outros homens.
Ele trata a morte por tu. Conhece-lhe os jeitos e as manhas e só pode ter por ela o respeito que se tem por aquilo que conhecemos de ginjeira: é gingão com ela, mas tem-lhe amor. Ou não fosse todo o Fado um fingimento da morte e todo o fadista um fingimento da vida
E é um Fado.
E é uma morte.
E é uma saudade, e um destino. Ou não fosse a saudade, como memória do bem que jamais regressará, no mal que nunca desaparecerá, uma espécie de morte. O mesmo, em vida que ver morrer. Ou não fosse o destino, como pressentimento sem recuo nem apelo, uma espécie de preparação para a morte. O mesmo, em vida, que ver-mo-nos morrer.
E é um Fado
E é uma morte.
Pela saudade, o fadista pôde saborear a morte que lhe sobe do peito pela garganta, até à boca. É talvez um amargo e doce paladar - terá concerteza algo a ver com amêndoas cruas, caroços de cereja, vinho acre.
Pelo destino, o fadista faz no peito a cama à morte e o aroma desses lençóis sobe pela garganta até à boca e tem o cheiro de uma mortalha lavada nas lixívias pungentes da vida.
E é só um Fado.
É afinal apenas uma Morte.
Mas que sentido teria celebrá-la e senti-la senão com sua própria língua, a do Fado e da Morte ? A morte de um fadista, a morte de Marceneiro, só pode ser celebrada e sentida na voz de outro fadista. Não pode ser escrita, não consente ser lida.
Porque o Fado precisa dos seus fadistas mortos, das suas lendas e lugares. No Fado, o luto continua. Deste modo sempre. Ou há alguém que disputa a lenda e o lugar da Severa ? Ou há alguém que duvide que, como morto, Marceneiro servirá o Fado como o não pôde servir nos últimos anos da sua vida ?
E é outro Fado.
E é nenhuma Morte.
Ao morrer, Marceneiro inicia uma outra carreira no Fado. Tão bela e importante como aquela que findou. Será furiosamente lembrado, mistificado, transformado em voz. Porque é uma das bonitas qualidades do Fado: o Fado nunca esquece. Agora é que Marceneiro começará a viver, porque já está morto, reconciliado com o seu destino de homem, preparado para a sua missão de reminiscência e saudade.
E é este o verdadeiro Fado.
E é esta a verdadeira Morte.
Porque os fadistas não morrem como os outros homens.
Melhor: nem sequer morrem. Toda a vida anseiam morrer. De amor e paixão, de cio e de saudade. Sem respeitar a vida, que é coisa que vem e que passa, senão daquilo que a vida tem de transportadora. Transportadora da imagem e do desejo das coisas que se amaram, e que nela se guardam, tão brancos como no dia que nasceram,os vícios da alma, os vícios do corpo.
E é assim um bonito Fado.
E não é assim uma feia Morte.
Ou não haja alguém que ponha em causa que um fadista não é um homem que, ora em ora, canta o Fado. Não existe esse bicho: o fadista em tempo parcial. Cantar o Fado é apenas um momento na vida de um fadista, tão natural como abrir as janelas de manhã, tão normal como as tarefas do dia-a-dia. E as tarefas do noite-a-noite, as rondas, as batalhas, os amores, os vinhos, os amigos, os trabalhos, misturam-se com o canto e - nos grandes fadistas, como o Marceneiro - entram pelo canto adentro e tudo encharcam para que a voz depois dê vazão à paixão, dê cor à dor, dê despejo ao desejo.
È isto o dito Fado.
Bendito Fado, para além da Morte.
Alfredo Marceneiro foi esse fadista em que o Fado, como mero canto, era indissociável do Fado, como mera vida. Mas se dantes não havia realidade que podia com o arroubo de lembrar - o Fado é uma perpétua reconstrução do passado, sabendo sempre que nunca o poderá reconstruir a tempo de evitar o futuro - se dantes não havia Marceneiro-homem que podia com o esplendor de Marceneiro-mito; agora, agora e durante os muitos anos que só o Fado guarda contristadamente faz enternecer, Marceneiro pertence todo ao Fado como nem ele em vida, conseguiu pertencer.
E é Fado
E deixa de ser Morte
Digamos só: Olá Alfredo Marceneiro, é bom tê-lo outra vez entre nós.